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Vaga no Conselho de Segurança não é prioridade, diz Araújo

25 de Março de 2019

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Aos poucos, após aproximadamente 80 dias de governo e três viagens internacionais realizadas pelo presidente da República, o governo Jair Bolsonaro vai colocando em prática a sua política externa. Uma "nova política externa", costuma destacar o chanceler Ernesto Araújo, que se credenciou para o cargo após publicar textos antes mesmo das eleições de 2018 defendendo que o país atuasse em busca de seus próprios interesses, em vez de agir em função do chamado globalismo.

A identificação de algumas dessas ideias com as posições do filósofo Olavo de Carvalho e a atuação de familiares do presidente na área das relações exteriores acabaram envolvendo o Itamaraty nas recentes turbulências políticas enfrentadas pelo governo. O ministro, no entanto, recebeu o Valor para uma rápida entrevista exclusiva em Santiago, onde se dividia entre conversas sobre integração regional e cooperação com o Chile e mostrar que a política externa que pretende executar tem começo, meio e fim.

"Começo" por ter uma concepção teórica e filosófica como base. "Meios" devido à escolha de instrumentos, espaços e formatos que o Brasil usará atingir seus interesses na arena internacional. E como "fim" uma busca por liberdades, sejam elas comerciais, sejam políticas, direitos humanos e democracia. Mesmo que seja em parceria com governos de esquerda, assegurou o chanceler. Isso sem falar em ampliar a projeção do Brasil, sem necessariamente manter alguns dos objetivos que marcaram os governos do PT, como a busca por uma cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU.

Araújo trabalha, por exemplo, para que o Mercosul volte a impulsionar a liberalização comercial, e busca um acordo do bloco com a União Europeia e o Canadá ainda neste ano. No Brics, o objetivo é assegurar que o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB, na sigla em inglês) financie projetos de infraestrutura no Brasil.

A criação da Prosul concretizada no fim da última semana também faz parte desse desenho, em que o Brasil e outros países decidiram denunciar os acordos assinados no âmbito da União de Nações Sul-Americanas (Unasul) para criar uma instituição que promova as liberdades, os direitos humanos e reúna apenas Estados democráticos.

 

Leia a seguir os principais trechos da entrevista:

 

VALOR: Em seus textos e discursos, o senhor faz uma defesa enfática do Ocidente. A relação do Brasil com o governo dos Estados Unidos também mudou de patamar e o fim da Unasul sinaliza que as relações da Prosul com Washington serão diferentes. Mas como se darão as relações com países bastante presentes na região, sobretudo na Venezuela, como China e Rússia?

 

Ernesto Araújo: No momento, não vejo a Prosul como uma entidade que necessariamente vai dialogar com terceiros países. Ao menos não de maneira sistemática. Ela tem vocação, pelo seu desenho, de trabalhar de maneira ad hoc, ver quais os problemas e as iniciativas do momento. Não é necessariamente criar processos abertos. Não vislumbro muito no momento a necessidade de que haja um relacionamento conjunto com a China, por exemplo, com a Rússia ou com qualquer outra potência de fora da região ou com os EUA dentro do nosso continente. É mais um processo entre os países, e cada um deles tem o seu relacionamento com esses diferentes atores. Ela é aberta nesse sentido também, ela não exigirá que os países adotem linhas políticas comuns.

 

VALOR: Em razão dessas diretrizes, ainda não está claro como se dará a presidência temporária do Brasil no Brics, justamente o grupo que reúne o Brasil e os principais países que não são considerados ocidentais.

 

Araújo: Fundamentalmente queremos dar um enfoque prático ao Brics, que é sua vocação. Nós procuramos temas que fossem comuns aos países e achamos sobretudo o tema da inovação, que é fundamental para o Brasil, e esses países têm de diferentes maneiras se destacado em inovação e tecnologia. Vamos trabalhar com destaque para isso ao longo do ano, além de iniciativas que existem tradicionalmente, como coordenação na área de saúde. Também vamos incentivar o Novo Banco de Desenvolvimento, o chamado Banco do Brics, para que ele invista mais no Brasil. Ele existe, está lá, o Brasil já botou dinheiro lá, então é preciso que haja mais... Não é que eles não queiram, o Brasil também precisa fazer a sua parte e apresentar projetos que possam ser financiados. Queremos ainda também trabalhar na temática da economia digital. O Brics tem muito essa vocação de ver o que é possível fazer, e não necessariamente forçar coisas que não sejam possíveis.

 

VALOR: Como o quê?

 

Araújo: Na Venezuela temos percepções diferentes das de China, Rússia e África do Sul. Mas não queremos colocar isso em discussão no Brics. Fiz questão de dizer [na reunião que participou do grupo] que temos essa preocupação e que sobretudo estamos abertos a falar da nossa percepção como país vizinho da Venezuela. Somos mais afetados, temos isso como uma realidade muito próxima e queremos compartilhar isso para ajudá-los a entender a situação.

 

VALOR: Há projetos já concretos que podem ser beneficiados pelo Novo Banco de Desenvolvimento?

 

Araújo: Estamos gerando um portfólio muito interessante de projetos de infraestrutura, e a ideia é ter presente que o NDB pode fazer parte da arquitetura financeira desses projetos, assim como o BID, o Banco Mundial e evidentemente financiamento privado. Seria então dentro do programa brasileiro de novos projetos de infraestrutura que a gente procuraria atrair o NDB. Ele vai passar a ter um escritório no Brasil, o que vai facilitar muito. É uma fonte interessante de financiamento.

 

VALOR: Haverá eleições na Bolívia e na Argentina. Dependendo do resultado dessas eleições, a Prosul pode receber novo impulso ou acabar sofrendo um revés?

 

Araújo: Esperamos que não, pois aí entramos na questão de que é democracia e não é ideologia. Confiamos que serão eleitos democraticamente, então totalmente dentro do paradigma que estamos querendo montar. Se você eleger governos de esquerda na região e eles tiverem o compromisso democrático que a gente tem, não há problema nenhum ao meu ver.

 

VALOR: Quando e como deve se caminhar para uma solução na Venezuela?

 

Araújo: No momento, o que se vislumbra é o regime Nicolás Maduro cada vez mais isolado diplomaticamente, politicamente e economicamente. O que gera uma situação insustentável para ele, já que todos os principais parceiros econômicos da Venezuela na região - é claro que há China e Rússia, mas enfim - rejeitam esse regime. É um isolamento que é muito vivo para o regime e que começa a ter consequências, como no BID, onde foi aceito por votação de 75% dos membros um integrante do governo Juan Guaidó como representante legítimo da Venezuela. Então, cada vez mais a expectativa é que "Venezuela" passe a significar "Venezuela presidida pelo presidente interino Juan Guaidó", e não o regime espúrio, por mais que ele ainda controle os mecanismos de repressão. É basicamente o que ele controla. Como você define um governo? Pelo mecanismo de repressão ou pela legitimidade constitucional e adesão popular? O Guaidó visivelmente está mostrando que tem adesão popular, circulando pelo país, falando com sindicatos e entidades. Isso é um processo que está acontecendo.

 

VALOR: Como?

 

Araújo: O Guaidó até há pouco era uma pessoa que tinha feito uma declaração. Agora ele é uma pessoa que circula no país e essa legitimidade é tão percebida que o aparato de repressão não se moveu contra ele como se falava. Claro que há sempre o temor de que ocorra isso e seria uma tragédia se fosse preso etc., mas continuamos dando todo o apoio para o governo interino continuar com esse processo. Cada dia fica mais natural a ideia de uma transição democrática a partir do governo interino e menos natural a permanência de Maduro com esse aparato repressivo na mão.

 

 

VALOR: E esse processo avançará em função da adesão de servidores públicos civis e militares ao governo interino e da lei de anistia que foi aprovada?

 

Araújo: É como se fosse uma coisa de ficção científica, em que uma coisa vai se desmaterializando ali e se materializando aqui. Só que é o Maduro que se desmaterializa, e o Guaidó que se materializa. Cada dia desaparece um pouquinho aqui e aparece um pouquinho lá.

 

VALOR: Falamos já da presença da China e da Rússia na Venezuela. A Índia também tem comprado mais petróleo da Venezuela e, assim, vem aumentando sua presença na região. Como esses contratos são futuros, isso pode de alguma forma influenciar ou retardar esse processo?

 

Araújo: No caso da Índia, eu não acredito. A Índia tem um compromisso democrático muito grande. É um país com uma projeção global muito grande, o que leva eles a atuarem aqui. Mas são parceiros excelentes para a Venezuela, para o Brasil e para qualquer país. Não vejo esse problema, não. Hoje, esse petróleo futuro da Venezuela é uma coisa meio teórica. A produção está diminuindo, a PDVSA foi aparelhada e sucateada. Esse petróleo futuro talvez não exista.

 

VALOR: A obtenção de uma cadeira definitiva no Conselho de Segurança da ONU foi um dos objetivos prioritários da política externa nos governos do PT. Isso continuará na administração Jair Bolsonaro?

 

Araújo: O Conselho de Segurança a gente não está muito preocupado com isso. O que queremos é ter uma atuação nas várias instâncias da ONU compatível com o que nós acreditamos. Nossas ideias, nossos valores e nossos interesses. Ou seja, nesse plano multilateral, claro que queremos continuar atuando. Mas com uma política de dentro para fora: levando para eles o que nós queremos e nós somos, e não trazendo de fora coisas que têm que ser impostas ao povo brasileiro. É um pouco essa inversão.

 

VALOR: A projeção internacional do Brasil na ONU também se dará com um aumento da participação das Forças Armadas em operações de paz?

 

Araújo: Essa questão é importantíssima. Há muito interesse do Brasil em voltar a participar de grandes operações de paz e isso é muito importante para as Forças Armadas, sua capacitação. O Brasil e as Forças Armadas brasileiras têm um prestígio enorme nessa área, merecido. E isso projeta o Brasil, mas não necessariamente para ter uma cadeira no Conselho de Segurança. Não achamos que tudo deve visar isso. O Brasil estar em operações de paz é importante para mostrar que é grande e pode contribuir nessa área, assim como você ter uma atuação firme na área de direitos. Por exemplo defendendo o que a gente considera os reais direitos humanos, e não a politização dos direitos humanos. As pessoas vão se acostumar a ter uma voz do Brasil que é uma voz própria. Talvez diferente da voz do passado, que era meio uma voz de ventríloquo: o global falando pela voz do Brasil. Uma voz própria que talvez agrade a uns, e a outros, não. Sem problemas. É isso que tem que ser o sistema multilateral: cada país falando com sua voz própria, e não todos com vergonha ali de dizer alguma coisa diferente porque têm que dizer uma coisa comum.

 

VALOR: O antiglobalismo de alguma forma não é antagônico ao multilateralismo?

 

Araújo: Não. O multilateralismo é uma coisa boa em si mesma. O problema é que ele virou uma ferramenta do globalismo, mas eles não são a mesma coisa. O multilateralismo seria um espaço de discussão dos países. Ele não é para existir, era para ser uma mesa onde os países se sentam e discutem cada um a partir da sua perspectiva e você tenta chegar a uma coisa comum. O aconteceu é que ele passou a ter uma vontade própria. A mesa começou a falar e as pessoas começaram a se dobrar e respeitar a mesa. Não é para ser assim. Claro que é importante que haja, por exemplo, o secretário-geral das Nações Unidas, sempre uma voz importante e da paz. Mas organismo em si é de nações unidas. Nações unidas. Chegaram lá nações. Não pode conceber isso como uma entidade própria que se superpõe. Esse é um processo que não é conveniente que se materialize, porque não é a concepção original do sistema multilateral. Ele é multilateral, ou seja, muitos lados. Esse é o problema, pois em muitos casos ele não tem sido multilateral. Não tem multi nem lado. Tem um centro de onde começam a emanar coisas que os países têm que imitar. Este é que é o problema.

 

VALOR: Segundo essa visão, o Mercosul deve ser reformado no governo Bolsonaro?

 

Araújo: O Mercosul é fundamental para nós dentro da nossa política comercial. Temos falado muito que estamos retomando a vocação original do bloco: o livre-comércio e a democracia. O Mercosul surgiu realmente num momento em que a integração entre os quatro países era parte de uma recente retomada da democracia. Isso é fundamental. E hoje ele necessita de um trabalho que estamos fazendo de se tornar mais eficiente na abertura, e não no fechamento. Ou seja, redução de barreiras tanto entre os países quanto com terceiros, para deixar as economias respirarem. O Mercosul por muito tempo foi um pretexto que os países usavam para não abrir suas economias e manter ineficiências. É claro que isso tudo tem que ser feito com cuidados e várias dimensões têm que ser olhadas, mas ele também está provando que é um instrumento capaz de avançar em negociações. Estamos avançando em negociações com a União Europeia muito firme, com o Canadá e outros parceiros. O Mercosul vai muito cedo provar que pode ser uma plataforma para acordos com terceiros países, mas também uma coisa que não seja excludente. A gente discute também essas flexibilidades e em outros casos talvez seja interessante que os países negociem ao menos alguns aspectos individualmente dentro de um guarda-chuva comum. Isso também faz parte: desdogmatizar o Mercosul.

 

VALOR: Quais são as perspectivas reais em relação às negociações com Canadá e União Europeia?

 

Araújo: Estamos trabalhando muito. Não tem como dar datas, mas não acho impossível fecharmos esses dois acordos neste ano. Ter no primeiro ano do novo governo acordos importantes fechados do Mercosul seria importante para o Brasil e para outros países também.

Valor Econômico – 25/03/19

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