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Concorrência em campo

04 de Setembro de 2019

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Limitar a 2°C a elevação da temperatura da Terra até o final deste século não depende apenas de uma transição das energias fósseis para as renováveis. As mudanças no uso da terra, seja para a produção de alimentos ou biocombustíveis, contribuem de forma definitiva para o aquecimento global, mas representam também oportunidades. É o que aponta o relatório especial sobre Mudança do Clima e Terra, divulgado mês passado em Genebra, na Suíça, pelo Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em inglês) da ONU. Elaborado por 103 cientistas de 52 países nos últimos dois anos, o estudo traz uma revisão de mais de sete mil artigos científicos sobre o tema e é o primeiro da série de estudos do IPCC dedicado a esmiuçar os impactos, para o clima global, das transformações que têm ocorrido nos ecossistemas terrestres.

Os dados mostram um aumento dos riscos associados ao clima, como desertificação, escassez hídrica, mudança no regime de chuvas, incêndios florestais e insegurança alimentar. Mas a boa notícia é que o sistema global de produção de alimentos, que responde por até 37% das emissões de gases de efeito estufa, pode também ser um instrumento de resposta à mudança do clima, com ganhos de produtividade e tecnologias agrícolas que o Brasil já vem utilizando. O desafio é aumentar a escala.

"O relatório deixa claro que é fundamental desenvolver técnicas agropecuárias que mantenham e aumentem o estoque de carbono no solo, porque isso eleva a produtividade agrícola e, ao mesmo tempo, evita que esse carbono seja lançado na atmosfera. Precisamos disso em larga escala no Brasil", diz Paulo Artaxo, professor do Instituto de Física da Universidade de São Paulo, membro do IPCC e autor principal do segundo capítulo do relatório.

Outra oportunidade para o Brasil são os combustíveis: o relatório recomenda ampliar a produção de biocombustíveis, mas alerta que ela terá de ser feita de modo sustentável, sem concorrer com a produção de alimentos. Para isso, será preciso aumentar a produtividade dos biocombustíveis já existentes, como etanol e biodiesel, desenvolver mais combustíveis de segunda geração, que utilizam resíduos como o bagaço da cana-de-açúcar.

Segundo o relatório, 44% das recentes emissões antrópicas de metano, um potente gás de efeito estufa, vieram das mudanças no uso da terra - é o caso, por exemplo, da derrubada de florestas para dar lugar a pastagens. Em todo o mundo 5,3 milhões de km² de terra foram convertidos para o uso agrícola desde 1961, uma área equivalente a dois terços do território da Austrália.

Para Artaxo, a questão chave para o Brasil é equilibrar quatro pontos: a redução do desmatamento, o reflorestamento para absorver carbono da atmosfera, a produção de alimentos para uma população em crescimento (10 bilhões de pessoas em 2050) e a produção de biocombustíveis. Os quatro competem pelo uso da terra em todos os países e aqui não é diferente. Mas o recente aumento do desmatamento e das queimadas na Amazônia é um fator de alto risco para esse equilíbrio, alerta o cientista. "O Brasil está numa situação muito delicada. É fundamental que o país retome a rota e possa desenvolver um agronegócio que seja sustentável no médio e longo prazo: isso é estratégico", diz Artaxo. Segundo o MapBiomas, plataforma de mapeamento colaborativo da cobertura e uso do solo no Brasil, o país perdeu 89 milhões de hectares de área de florestas nativas no período entre 1985 e 2018. Ao mesmo tempo, a área destinada à agropecuária cresceu em 86 milhões de hectares e hoje ocupa 260 milhões de hectares, o equivalente a 31% do território nacional. As florestas são 59% do território e outros tipos de vegetação nativa, 7%.

Segundo o MapBiomas, plataforma de mapeamento colaborativo da cobertura e uso do solo no Brasil, o país perdeu 89 milhões de hectares de área de florestas nativas no período entre 1985 e 2018. Ao mesmo tempo, a área destinada à agropecuária cresceu em 86 milhões de hectares e hoje ocupa 260 milhões de hectares, o equivalente a 31% do território nacional. As florestas são 59% do território e outros tipos de vegetação nativa, 7%.

Mesmo com uma grande parcela do território ocupada por florestas, a escalada do desmatamento já coloca em risco as metas ambientais. Um dos compromissos assumidos na conferência do clima de Copenhague, em 2009, é reduzir o desmatamento da Amazônia em 80% até 2020, em comparação com a média registrada entre 1996 e 2005. Para isso, o desmatamento anual não deveria exceder 3,8 mil km² , mas em 2018 alcançou 7,8 mil km².

Para Tasso Azevedo, coordenador geral do MapBiomas, os sistemas de monitoramento do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) já mostram que o desmatamento será ainda maior este ano. "O mais provável é que seja da ordem de 10 mil km² . Estamos saindo do controle, a luz vermelha foi acesa", afirma.

Além de frear o desmatamento ilegal, políticas públicas de fomento ao agronegócio sustentável serão essenciais para o Brasil avançar nas questões ambientais. A principal delas é o Plano ABC (Agricultura de Baixo Carbono), lançado em 2010 para fomentar tecnologias agrícolas que reduzam a emissão de gases de efeito estufa. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) é responsável por sua gestão, que inclui linha de crédito subsidiada como um dos instrumentos. Os recursos são operados por bancos públicos, especialmente o Banco do Brasil, e privados. Para 2019, estão previstos no Plano Safra R$ 2,096 bilhões para investimentos do programa ABC.

O programa financia práticas de conservação e eficiência agrícola, como plantio direto, fixação biológica de nitrogênio no solo, recuperação de pastagens e adaptação às mudanças climáticas. Entre 2010 e 2018, a linha concedeu R$ 17,3 bilhões aos produtores rurais, que, de acordo com o Mapa, ajudaram na transformação de 27,6 milhões de hectares, o equivalente a quase 15% da área agricultável do país.

Mesmo com resultados no campo, a linha sofre altos e baixos. Chegou a ter mais de 8.000 contratos na safra 2015/2016, mas na safra anterior, 2018/2019, ficou quase 20% aquém da utilização. Questões burocráticas e desconhecimento da linha pelos produtores estariam entre os motivos para a baixa demanda. Para o Mapa, trata-se de mudar a cultura aos poucos. "Entendemos que o papel do Plano ABC vai muito além da linha de crédito. A adoção dos sistemas propostos deve continuar avançando, ainda que o crédito bancário não esteja sendo acessado em sua totalidade", diz Mariane Crespolini, diretora do departamento de produção sustentável e irrigação da Secretaria de Inovação, Desenvolvimento Rural e Irrigação do Mapa.

Entre os bancos privados que operam com o programa ABC, há um esforço de levar informação aos produtores rurais. O Santander, por exemplo, tem um total de 300 agências localizadas em áreas de agronegócio, sendo 21 especializadas nessas operações. Em 2018 o banco concedeu R$ 396,1 milhões em financiamentos para projetos de agricultura de baixo carbono, modernização e inovação no campo. Nos sete primeiros meses de 2019, houve um crescimento de 15% na concessão de crédito em comparação ao mesmo período do ano passado. "O agricultor está buscando produtividade, quer reduzir custos e ser mais eficiente", diz Carlos Aguiar, diretor de agronegócio do Santander. Uma das linhas com grande procura é para a instalação de painéis solares em empreendimentos agrícolas, uma linha de crédito nova, mas que financiou R$ 12 milhões em equipamentos só este ano.

Valor Econômico – 04/09/19

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